Um apanhado geral sobre os principais animais peçonhentos que contribuem para a ciência na área da saúde. O hoje e o que ainda está por vir!
Diversos animais, tanto terrestres, quanto marinhos, possuem veneno. Como representantes, podemos citar as serpentes, aranhas, escorpiões, abelhas, peixes, sapos, lagartas, anêmonas, caracóis de cones e esponjas.
Por que esses animais produzem veneno?
Eles resultam de um longo processo evolutivo e da seleção natural (lembram do Darwin?), tendo como principal função a defesa, predação ou ajuda na digestão. Mas, além da sua atividade natural ou biológica, nosso grupo de pesquisa, e alguns outros mundo afora, pesquisam os venenos como fontes para a produção de medicamentos. Como assim?? Pois bem, para responder isso, me acompanhe nesse texto, iniciando pela definição do que são venenos e toxinas.
Os venenos são uma mistura de diversas moléculas, denominadas toxinas. Essas toxinas são formadas, principalmente, por uma variedade de proteínas, muitas delas são enzimas, peptídeos (a menor porção de uma proteína), íons inorgânicos e nucleotídeos. Elas interagem em receptores celulares, transportadores de membrana e canais de íons. Isso leva a alterações no corpo e a manifestações de determinados sintomas, causando por exemplo, mudanças na hemostasia (equilíbrio do fluxo sanguíneo), levando a um sangramento contínuo ou então a paralisia de alguma região do corpo, ação neurotóxica, como mostrado no infográfico abaixo.
É estimado que em uma amostra de veneno pode conter de 100 a 500 componentes bioativos. Em uma escala maior, esses números podem chegar de 10 a 50 milhões de compostos naturais disponíveis para estudos, mas até agora, apenas 0,01% disso foi explorado.
Outra informação importante é que as toxinas possuem características interessantes, como a alta estabilidade, pequeno tamanho, facilitando sua entrada nas células. A partir disso, já podemos observar que os venenos possuem uma rica fonte de toxinas para serem estudadas, que podem servir como fonte para a elaboração de moléculas derivadas e com o mecanismo de ação melhorado, com diversas aplicações, dentre elas a terapêutica.
Estudos pré-clínicos, têm mostrado como os venenos e suas toxinas possuem um grande potencial para o desenvolvimento de novas drogas para o tratamento de comorbidades, como doenças neurodegenerativas, autoimunes e cânceres. Os trabalhos, em geral se concentram em quatro fontes principais de toxinas, as serpentes, aranhas, escorpiões e abelhas. Porém outros animais também são investigados, como descrito adiante.
Em doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer
Estudos pré-clínicos, mostram que toxinas de serpentes da classe das dendrotoxinas, fasculinas e metaloproteinases, podem ser aliadas no tratamento dessa doença. As dendrotoxinas e fasciculinas poderiam ajudar na liberação de acetilcolina, um neurotransmissor de grande importância pro funcionamento correto do cérebro. Dendrotoxinas bloqueiam canais iônicos e as fasciculinas inibem a ação da enzima acetilcolisterase (responsável por controlar o funcionamento da acetilcolina). Enquanto as metaloproteinases podem ajudar na degradação da proteína-β amilóide, responsável pela formação das placas amiloides, características do Alzheimer. Por esses benefícios, essas toxinas são investigadas para entender a sua estrutura e elaborar moléculas derivadas para ajudar no tratamento da doença.
Doenças autoimunes
Doenças autoimunes são mediadas por linfócitos (células de defesa do organismo) e resultam em uma resposta imune anormal em uma determinada parte do corpo em condições normais. Essa resposta incomum é relacionada com um canal de voltagem de potássio, o Kv1.3 e estudos apontam que o controle dessa estrutura aliviaria a condição de resposta exacerbada. Investigações com o veneno de anêmonas marinhas, mostraram resultados promissores, dentre eles, a toxina ShK se destaca, devido a sua especificidade, atividade inibitória e potência no Kv1.3. A partir dessa toxina foi gerada uma molécula derivada, a ShK-186, que apresentou resultados promissores em estudos clínicos fase II.
E no câncer?
Toxinas de serpentes (metaloproteinases, fosfolipases A2 e flavoenzimas) e de escorpiões (clorotoxina, iberiotoxina, caribdotoxina), mostraram ação antitumoral em células de diferentes tumores como gliomas (sistema nervoso central), linfomas (sangue), melanomas (pele) e neuroblastoma (sistema neuroendócrino). Elas agem de diferentes formas, mas o efeito final observado nesses estudos é a redução da capacidade de crescimento do tumor em modelos experimentais em laboratório.
Mas também já existem estudos em fase clínica. Em um deles, a clorotoxina, foi associada a um receptor sintético de células T que é capaz de reconhecer células tumorais, estimulando a resposta imunológica contra células de glioblastoma.
"No nosso laboratório temos estudado há mais de uma década uma toxina do veneno da serpente Bothrops jararacussu, denominada BJcuL. Essa toxina mostrou ação tóxica sobre diferentes células tumorais, ao mesmo tempo em que mostrou ser capaz de ativar células do sistema imunológico, que teriam o potencial de ajudar o corpo a combater o tumor. Nos próximos posts vamos contando um pouco mais sobre nossas descobertas."
Um exemplo recente, agosto de 2021, uma pesquisa que envolveu pesquisadores da Unesp, USP, UFSCar e Unifesp trouxe um possível aliado no tratamento contra o Sars-Cov-2, responsável pela Covid-19. Derivados de uma molécula de B. jararacussu foram criados a partir da toxina bothropstoxina-I, mostrando uma ação de até 75% contra a replicação do vírus em células de uma linhagem de macaco. Segundo os pesquisadores, as próximas etapas envolvem testar a eficiência da molécula em diferentes concentrações e se ela pode promover outras ações, como a proteção da célula contra a invasão do vírus. Após isso é previsto a realização de testes com animais infectados com o Sars-Cov-2 .
Das diversas pesquisas realizadas com venenos, alguns casos já resultaram na elaboração de medicamentos, que hoje são usados no tratamento de doenças. Começando com o exemplo mais clássico, o Captopril é o medicamento que utiliza um derivado da toxina do veneno de jararaca. Seus estudos começaram em meados de 1960, onde foram purificados e caracterizados os fatores potenciador de bradicininas. Esse grupo de peptídeos presentes no veneno da jararaca foi relacionado com a queda da produção da molécula vasoativadora angiotensina, através da inibição da enzima conversora da angiotensina, que consequentemente diminui a pressão sanguínea. Posteriormente, na década de 1980, foi criado um derivado, a partir da toxina teprotide, o que resultou na criação de um dos principais medicamentos utilizado no tratamento da hipertensão.
O Ziconotide (2004) é um analgésico que tem como base uma das toxinas do veneno do molusco marinho Conus magus.Esse medicamento possui o composto SNX-111, derivado da toxina MVIIA, que age em canais de íons de Ca+ (Cav2.2) e reduz a transmissão de dor ao longo da medula espinhal. Ele é utilizado em casos de dores crônicas.
O Exenatide (2005) ajuda no tratamento do diabetes tipo II sendo derivado de um dos componentes da saliva do lagarto Heloderma suspectum a exandina-4. Esse medicamento possui um peptídeo similar ao hormônio GLP-1 (peptídeo semelhante ao glucagon-1). Pacientes com diabetes do tipo II, possuem o GLP-1 em baixas concentrações no sangue durante as refeições, devido a sua degradação. O Exenatide, impede que isso ocorra, ao interagir com a enzima que degrada a GLP-1, permitindo que ela dure mais tempo na corrente sanguínea e possa agir nas células β do pâncreas. Isso resulta na produção de insulina e consequentemente aumento da captação de glicose pelas células e queda de sua concentração no sangue.
"Esses foram alguns exemplos de como a pesquisa é importante. O que corrobora inclusive com o que muitas vezes ouvimos, de que a maneira com que enxergamos a vida faz toda diferença. Do veneno ao remédio, um diferente ponto de vista muda tudo!"
A curiosidade de conhecer os venenos e toxinas dos animais, abriu um leque de conhecimento e possibilidade que podem resolver diversos problemas. Dentro da Ciência, existe uma área multidisciplinar, responsável por estudar os venenos e toxinas tanto de animais, quanto de plantas e microorganismos. Sobre diversos aspectos, seja sua estrutura, função, mecanismo, origem, evolução e aspectos clínicos, denominada Toxinologia.
Os primeiros estudos conseguiram isolar poucos componentes e dependendo do tipo de toxina, precisavam de uma grande quantidade de amostra, mas graças a eles os passos iniciais foram dados, dando destaque aos venenos de animais como fonte de pesquisa. Com os avanços na tecnologia, de novas abordagens (proteômica e transcriptoma) e métodos mais sensíveis de detecção de moléculas, diferentes toxinas, mesmo em baixas concentrações, podem ser selecionadas e caracterizadas, sem precisar de um grande volume de amostra.
" As aplicações são diversas, indo além da terapêutica, como descrito ao longo do texto. Porém, o mais importante, é entender que esses animais e o ambiente precisam ser preservados, não simplesmente por serem uma rica fonte de toxinas com potencial clínico. Pois, como qualquer espécie, elas também possuem papéis importantes na natureza. A perda de uma delas acarreta a criação de uma lacuna tanto no conhecimento, quanto na sua função no ambiente. Isso afeta vários aspectos, seja o biológico, ecológico, clínico ou terapêutico. "
Autor: Daniel J. Scheliga
Edição: Fernanda de Almeida Brehm Pinhatti e Selene Elifio Esposito
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